Eu vou ser bem sincero, por mais que imaginasse, por mais que julgasse ou previsse, eu não tinha ideia do que iria encontrar pela frente. Esses dias na África, essa experiência intensa em Moçambique, a ida a cidade da Beira — epicentro do Ciclone Idai — me fizeram questionar de modo mais profundo o sentido de presente, a perspectiva de futuro que temos para nós.
Tudo começou com uma ligação inesperada da minha chefia, havia sido escalado para esta viagem inesperada à África. E, naquele momento, diga-se, retornava da cobertura de outro drama humano, o massacre na escola de Suzano. Era hora de voltar o foco para o Ciclone que varreu o sudeste de Moçambique — país irmão de língua e colonização — mas que nunca pisei antes. E foi tudo muito rápido, em poucas horas o voo até a África do Sul, a conexão para a capital moçambicana, a viagem até Beira mil quilômetros à frente. E aí, a mais dura realidade que esses quase vinte anos de repórter me mostraram.
A cidade de cerca de 600 mil habitantes é um daqueles cenários de filmes onde a devastação é vista desde o momento em que abrimos a porta de casa, do comércio, do hotel que nos hospeda. O ciclone Idai, segundo o gerente do hotel que nos recebeu gentilmente mesmo sem condições para isso (pois lá já não havia mais água nem energia elétrica) me disse que esse desastre colocou todos no mesmo nível: ricos sofrendo assim como os pobres. E ele está certo. Beira, até então terra de negócios devido ao porto nas águas do Oceano Índico, está praticamente toda destruída, de joelhos depois da chuva muito forte e dos ventos que passaram dos 170 quilômetros por hora.
Quem tem dinheiro, pouco encontra para comprar já que o desabastecimento de gêneros cresce a cada hora. E quem já não tem algum trocado continua vivendo ainda mais excluído, mais alheio ao mínimo disponível.
Os serviços pararam, a comunicação de telefone e internet perdeu quase todas as suas torres com os ventos. Estradas se romperam, não se chega à Beira por terra, só por avião ou barco. O que ainda resiste está isolado, ilhado. Os gritos de socorro têm dificuldade em vencer todas essas barreiras.
A fome, a sede
A população quer água limpa. Mas a sede é tanta que a faz depender de qualquer fonte que se encontre, mesmo sabendo que a cólera — um dos maiores terrores que ainda podem surgir por aqui — é uma ameaça próxima. Alguns especialistas com quem conversei por aqui já dizem como quase certa.
Comida como conhecemos, com algumas refeições por dia, que já não existe para os mais pobres, agora atinge muitos outros, milhares de desabrigados. No abrigo que visitei é uma vez por dia, sem hora marcada, mas na hora em que dá para servir. Mães com seus filhos padecem já por fraqueza própria e também por ver suas crianças de barriga vazia. O mundo por aqui deu sua pior face, mostra sua força mais cruel. Uma grávida de seis meses com quem conversei ontem passava mal, ao sol, ela estava com náuseas, dores. Ali, duas vidas pareciam escapar deste mundo cheio de erros.
Conversei com alguns jornalistas de outros países, e digo, nossa categoria é rara por aqui. Creio ser o único latino-americano. Mas todos estão meio perdidos com tanta dor e também frustrados pelo que podemos fazer perante tanta necessidade. Ao ver minhas reportagens entrando no Brasil e outros países, tenho a sensação de estar no lugar certo.
Agora, não trocaria essa beira do mundo por um resort de luxo. Mas ao olhar para o Oceano Índico que banha essas terras fico ainda mais pensativo. Afinal, foram por essas águas que tantos — séculos a fio — vieram aqui apenas para explorar, maltratar, roubar, desmerecer. Elas também poderiam ser usadas como rotas da fraternidade e da justiça social, forma humilde de saldar dívidas históricas com esse povo tão sofrido.